quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Joaquim!

Era um almoço normal... era! Porque numa babel como Sampa nunca sabemos as vidas que vamos encontrar... nunca sabemos quando vamos ser tocados por histórias que chegam a ser líricas de tão comoventes... surreais porque contadas na rotina Paulistana de um boteco, um café, uma mesa de bar...


Lá íamos as quatro... perdão, os cinco, porque o B. é um besnico de gente, mas já é a estrela de qualquer refeição!


No fundo, formávamos uma equipe... duas foram saber vistos, polícias federais e ministérios do trabalho, as restantes ficaram na "defesa", a tomar conta do pequeno B.


No descanso das guerreiras, a conversa fluía, e atrás do balcão, trabalhava-se a hora de ponta. Fitando os homens do bar logo percebi a nacionalidade do mais velho... português com certeza, as mãos calcadas de décadas de trabalho, o olhar exigente com um matreiro sentido de humor... o lugar do bigode dos anos oitenta continuava lá... a presença em terras de Vera Cruz já lhe tinha posto uma bela madeixa cajú no cabelo, qual Jorge Jesus tropical...


Joaquim (o nome é fictício, mas a mitologia brasileira obriga-me a usá-lo, ora pois) ouve o sotaque patrício... acaba o sumo, limpa as mãos, e aproxima-se da nossa mesa... encara o bébé, levanta o queixo, soltando um "como está o menino?"... sempre à defesa, como bom homem português, nascido em tempos da outra senhora... fazendo um esforço titânico para não se comover com as risadas do pequeno B.


Resolvo puxar por ele... o meu instinto pisces diz-me que ele quer contar algo... mas eu não esperava por isto.


-"eu sou português, mas saí de lá muito novo... com três anos! Tinha oito irmãos e tive que sair... cheguei a esta terra sozinho, e estive vinte anos sem ir a Portugal"


Ok, a esta hora devem-se estar a perguntar (como eu me perguntei), como é que uma criança de três anos vem assim sozinha para o Brasil (sozinha não veio, mas sem pai e mãe com certeza...), como é que aquela mãe não deve ter ficado ao ver o filho de três anos ir embora, nem ela sabia para onde....


Está explicada a chave do sucesso deste homem: MEDO.... medo da solidão, medo da fome, medo da dependência emocional: porque a dependência mais básica da infância foi-lhe cortada com a brutalidade da distância. Medo que faz agarrar ao trabalho, que faz acartar caixotes, descascar frutas à velocidade da luz. Medo que não permite depressões ou grandes considerações metafísicas. Medo que gera trabalho, trabalho que gera sucesso...


Sucesso que o põe naquele boteco dos jardins a falar com quatro mulheres mudas de espanto...


Mas não é o fim da história de Joaquim... com os olhos brilhando conta que, ao fim de vinte anos, voltou a casa... na minha cabeça as palavras repetem-se, porque nem acredito na intensidade que carregam...


"ao fim de vinte anos..... ele voltou a casa..."


Imagino-o à porta da casa que nem se lembra ter sido dele... provavelmente com uma fotografia na mão, o dedo na campaínha, sem coragem de a tocar, cheio de medo de ser ignorado mais uma vez... vinte anos de suposições a acabarem naquela porta...


 
"O filho pródigo"

 
 
Joaquim conta que entrou em casa dizendo ser amigo de um filho do patriarca... com certeza teve vontade de ser incógnito, invisível, como sempre se sentiu... e as palavras "sou seu filho" ficaram entaladas, não conseguiram sair... realmente faz sentido, como é que alguém se apresenta desta forma?


Meu Deus... os nervos... o turbilhão de emoções... a aparente normalidade... a realidade que supera qualquer ficção...


Os olhos ficam marejados quando Joaquim conta que uma mulher chegou vestida no seu avental, ainda esfregando as mãos de cozinheira inata no pano da cozinha... estacou em plena sala... fitou Joaquim de frente, de lado, de cima abaixo.... muda, saiu... e voltou com uma fotografia dele em punho...


SIM, senhora cozinheira, ele é o seu irmão.... sim, ele é sangue do seu sangue, e sim, são vinte anos de esperanças de reencontro que têm um final feliz...


Imagino lágrimas. Muitas, escorrendo da cara da família inteira... lágrimas em uníssono, abraços querendo aprender todos os contornos deste homem tão presente na memória, mas fisicamente nunca conhecido... e não imagino a alegria de Joaquim... acho que nem ele!


Fiz silêncio, entrecortado por palmas da F., pedidos de filets de frango e carros subindo os jardins! A dinâmica da cidade era implacável, e eu ali, muda... nem havia mais o que dizer... só desatar o nó que ficou no coração e absorver a energia daquele momento, a celebração da vida daquele homem!


Em São Paulo, as histórias especiais surgem quando menos se espera!